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R.F.Lucchetti X Zé do Caixão: uma história de amizade e rivalidade no mundo do terror

Após anos em silêncio, o roteirista foi redescoberto e falou de sua relação ambígua com José Mojica Marins

O roteirista e escritor R.F.Lucchetti. Foto: divulgação
Cynara Menezes
30 de março de 2015, 21h46

Aos 85 anos, o roteirista e escritor R.F.Lucchetti é o co-autor de algumas das histórias e do gibi de Zé do Caixão, o maior de todos os personagens brasileiros de terror. Mas não ficou famoso como José Mojica Marins, que dirigiu e deu vida ao macabro agente funerário desde os anos 1960. Para Mojica, Lucchetti escreveu O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), O Despertar da Besta (1969) e Quando os Deuses Adormecem (1972), entre outros títulos considerados pela crítica como os mais importantes da carreira do cineasta. No entanto, em parte dos trabalhos, como ocorreu com o filme Exorcismo Negro, de 1974, o nome do roteirista nem sequer foi citado nos créditos.

Após anos em silêncio, Lucchetti foi redescoberto nos últimos anos e atualmente tem até perfil no facebook, que utiliza para vender as próprias obras. São mais de 1500 livros publicados, com seu nome ou sob pseudônimo, que lhe renderam a fama de “papa da pulp fiction” no Brasil. Além de Mojica, Lucchetti foi roteirista dos filmes de “terrir” do cineasta Ivan Cardoso, como O Segredo da Múmia, de 1982. Agora sai em livro, pela Verve, Conversações com R.F.Lucchetti, uma compilação das entrevistas que concedeu ao longo de cinco anos ao radialista Rafael Spaca –por carta, pois até então o paulista de Santa Rita do Passa Quatro e que hoje vive em Jardinópolis se recusava a tocar num computador.

lucchetti

Um dos livros que Lucchetti assinou sob pseudônimo

Quando Spaca o encontrou, Lucchetti se sentia esquecido. “Ele nunca deixou de produzir, de escrever e te acreditar no que fazia. Porém, fazia quase uma década que não lançava um livro, não recebia convite para escrever roteiros para o cinema, e se sentia muito triste com isso”, conta o jornalista. “Eu o incentivava a abrir uma conta no facebook, isso permitiria a aproximação dele com o público. Mas sua aversão ao computador era muito grande. Até que em outubro do ano passado ele aderiu. Foi um espanto geral. Muitos achavam até que ele já tinha morrido… Durante duas semanas ele escreveu mensagens para as pessoas acreditarem que era ele mesmo que estava lá, a noticia circulou, a imprensa cobriu e hoje ele está aí, interagindo com pessoas do mundo todo. Lucchetti é um ícone e não sabia disso.”

Nas entrevistas reunidas no livro, sobressai a relação ambígua de Lucchetti com Mojica. Ao mesmo tempo que o roteirista afirma ser “amigo” do cineasta, se mostra magoado pela falta de reconhecimento (com Ivan Cardoso, ao contrário, mostra uma convivência mais fraterna). “Existe uma mágoa profunda. Lucchetti sente-se usado por Mojica. No livro, ele deixa bem claro como sua trajetória profissional foi prejudicada em razão das atitudes do Mojica”, diz Spaca. “Além do não-reconhecimento do seu trabalho, foram vários os episódios em que o Mojica falava mal dele ‘pelas costas’, prejudicando assim novas relações de trabalho com outros cineastas.”

gibize

O número um do gibi roteirizado por Lucchetti com arte de Nico Rosso

O ponto culminante do imbróglio entre os dois foi a história em quadrinhos de Zé do Caixão, que Lucchetti roteirizou e batalhou para publicar, com desenhos do lendário Nico Rosso, mas que, na última hora, Mojica acabou transferindo para outra editora, com acabamento inferior. Assim conta o roteirista:

“Em 1968, o Nico e eu tínhamos a revista A Cripta, que, segundo a crítica especializada ‘veio trazer uma nova dimensão aos quadrinhos de Horror’. Mas estávamos insatisfeitos pelo péssimo tratamento gráfico que a editora, a Taika, vinha dando à nossa revista. E resolvemos interromper sua publicação. No seu lugar, criamos O Estranho Mundo de Zé do Caixão e recebemos do Mojica a autorização de usar o nome de seu personagem (a HQ saiu pela editora Prelúdio). Numa noite, quando o quarto número da revista estava indo para as bancas de jornal, cheguei aos estúdios do sr. Mojica e encontrei-o conversando com o produtor gráfico Reinaldo de Oliveira. Na mesma hora, fiquei com a pulga atrás da orelha. Dois ou três dias mais tarde, chegou à Prelúdio uma carta registrada em cartório, comunicando que ‘a partir de seu quinto número O Estranho Mundo de Zé do Caixão passará a ser publicada pela Editora Dorkas, com a qual o sr. José Mojica Marins assinou um contrato de exclusividade; e, a partir da data desta carta, a Editora Prelúdio está proibida de usar a marca Zé do Caixão’. A carta vinha assinada pelo sr. Reinaldo de Oliveira, diretor editorial da Dorkas. O término da revista também selou o término de minha colaboração com o sr. José Mojica Marins.”

Lucchetti parece se divertir rebatendo cada declaração pública do “amigo” cineasta sobre seu trabalho como roteirista, como quando foi “acusado” por Mojica de gostar de castelos demais

A relação entre Mojica e Lucchetti tem, no entanto, sequência, ou uma tentativa de, com o roteiro de Encarnação do Demônio, filme que encerraria a trilogia de Zé do Caixão na década de 1980. O escritor chegou a elaborar um roteiro, baseado em Sete Ventres para o Demônio, livro que escreveu no começo da década de 1970 e que foi publicado em 1974 pela Cedibra. “Mas, quando vi, numa entrevista, o sr. Mojica exibindo uma encadernação vermelha e dizendo que era o roteiro de Encarnação do Demônio, percebi que havia perdido meu tempo. Então, rasguei tudo o que tinha escrito, porque não fazia sentido guardar algo que nunca iria se concretizar. Perdera meu tempo”, conta no livro. Com outro roteirista, o filme acabou finalmente estreando em 2008.

Lucchetti parece se divertir rebatendo cada declaração pública do “amigo” cineasta sobre seu trabalho como roteirista, como quando foi “acusado” por Mojica de gostar de castelos demais. “Ele tem esse problema da Inglaterra, que terror tem que ter castelo. Pro Zé do Caixão não dá certo”, disse o cineasta. Para responder, o roteirista se ampara em uma citação da biografia do próprio Mojica, o livro Maldito (editora 34), de Ivan Finotti e André Barcinski:

“Lucchetti e Rosso transpuseram para as páginas do gibi o mesmo clima dos filmes de Mojica: com histórias simples, acessíveis a todo o público, e cenários que lembravam qualquer cidadezinha do interior do país. Nada de castelos europeus e fog londrino; o horror de Lucchetti e Rosso era coisa nossa.”

Ferino, cita a pouco conhecida marchinha do carnaval de 1969 O Castelo dos Horrores, gravada por ninguém menos que o próprio Mojica Marins, que cantava: “Eu moro no castelo dos horrores. Não tenho medo de assombração. Eu sou Zé do Caixão.” Lucchetti provoca, triunfal: “Aí estão as evidências. Quem é que põe castelo no Brasil? Que responda o leitor.”

“Lucchetti é um cara excêntrico. Ele vive no interior de São Paulo, numa mansão cercada por enormes muros e patrulhada por uma matilha de cães ferozes. Ele não recebe ninguém, a não ser eu”, dizia Mojica

Para provocá-lo ainda mais, Rafael Spaca lembra do trecho do programa Roda-Viva com Mojica, de 1998, em que Ivan Cardoso cobra o colega.

Ivan Cardoso: Por que você fala tão pouco do Lucchetti, Mojica?

Mojica: Eu não tô falando pouco do Lucchetti…

Ivan Cardoso: Ele é um grande artista, você deveria falar mais então…

Mojica: O Lucchetti, você perguntou, fez doze roteiros.

Ivan Cardoso: Por que você fala tão pouco do Lucchetti? Ele é um grande artista, você devia divulgar mais ele…

Segundo Lucchetti, Mojica o “escondia” porque temia que ele o deixasse. Para comprovar, conta que uma vez encontrou com o jornalista Giba Um, que ficou surpreso em vê-lo e disse que uma vez tentara entrevistá-lo para uma revista, mas teria ouvido de Mujica: “O Lucchetti é um cara excêntrico. Ele vive no interior de São Paulo, numa mansão cercada por enormes muros e patrulhada por uma matilha de cães ferozes. Ele não recebe ninguém, a não ser eu.”

“Acho tudo isso muito deprimente”, diz o escritor. Será que Mojica irá responder? Mistério.

capalucchetti

 

 


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(2) comentários Escrever comentário

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Beto Silva em 01/04/2015 - 15h44 comentou:

BOA TARDE, CYNARA

PELO QUE EU ENTENDI DO TEXTO, O ZÉ DO CAIXÃO SOFRE DA MESMA " MALDIÇÃO ", ( SEM CONTAR O MAU COLEGISMO ) DO " IMORTAL GURU " PAULO COELHO.
UMA LÁSTIMA, SE ISSO PROCEDE!!!

ABRAÇO!

Responder

Gabriela Pereira em 11/04/2021 - 18h15 comentou:

Agora entendo algumas indiretas que constam no material extra do DVD O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Lá ele diz que deixou de fazer cinema, porque existe muita rivalidade e apunhaladas pelas costas, só é bonito mesmo na tela =/

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