Socialista Morena
Cultura

O portador

Existe uma acepção da palavra "portador" que só quem conhece são os que partiram cedo da casa dos pais para morar noutras bandas

Gravura de José Lourenço
Cynara Menezes
23 de novembro de 2012, 18h18

Existe uma acepção da palavra “portador” que só quem conhece são os que partiram cedo da casa dos pais para morar noutras bandas. Quem deixou o conforto dos seus para se aventurar por aí, estudando na capital, trabalhando em outro Estado, errando e acertando sozinho por esse mundo de meu Deus.

O portador representava, então, aquela pessoa que vinha trazendo uma comida gostosa, uma fruta da região, um presente, um regalo qualquer dos amados lá longe. “Quando aparecer um portador, eu mando para você”, dizia a mãe ou o pai, por carta ou ao telefone. Nem o carteiro mais rápido do mundo poderia superar, em presteza e dedicação, o portador com seu pacote. Mais do que matar a saudade de algum acepipe da terrinha, o portador trazia um afago, uma mensagem implícita de que você, filho pródigo, mesmo longe dos olhos, continuava perto do coração. Que não fora esquecido. Será que, no fundo, portador quer dizer “aquele que porta-a-dor”?

Com o tempo, o portador foi ficando cada vez mais raro. As pessoas passaram a sentir vergonha de pedir o favor, de incomodar, de tirar o viajante de seu planejamento para ir ao encontro do parente perdido entregar a encomenda. O portador virou uma espécie em extinção, o que é uma pena, porque, ao contrário dos correios, era grátis. E era esta, aliás, a principal vantagem que via nele a parentada disposta a agradar a ovelha desgarrada.

Lembrei do portador ao ver a belíssima exposição itinerante em homenagem aos cem anos de Luiz Gonzaga, O Imaginário do Rei (até o dia 5 de dezembro no Palácio do Planalto, em Brasília, e seguindo para outras capitais). Tudo em Gonzaga remete ao retirante, ao filho que partiu rumo ao desconhecido em busca de fortuna –no caso dele, fama e fortuna. Longe do aconchego do lar, aprendendo a dobrar os lençóis e a passar a roupa, a fazer a própria comida, a viver a vida tendo a saudade como principal companheira.

Está tudo lá, naquelas xilogravuras rústicas, nas fotos do sertão seco de chuva e úmido de lembranças. Imediatamente me veio à memória a canção No Dia Que Eu Vim-me Embora, de Gil e Caetano, que tantas vezes me fez chorar no exílio voluntário da casa materna, e que o Lua também gravou. “Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui/ Minha vó já quase morta/ Minha mãe até a porta/ Minha irmã até a rua/ E até o porto meu pai”. Nem chorando nem sorrindo, sozinho pra capital…

E não é que na história de Luiz Gonzaga também teve um portador? No início da carreira, o futuro rei do baião chegou a se apresentar tocando tangos com sua sanfona (belamente, diga-se de passagem), como um Carlos Gardel da caatinga, até que resolveu encarnar o sertanejo nordestino típico, inspirado em Lampião. Ele mesmo contou ao Pasquim em 1972:

“Naquela época, eu percebia que todo cantor regional, todo cantor estrangeiro, tinha uma característica própria. O gaúcho, aquela espora, bombacha, chapelão. O caipira tinha lá o seu chapéu de palha. O carioca tinha a famosa camisa listrada e o chapéu-coco. Os americanos, os cowboys. Quando Pedro Raimundo veio para cá vestido até os dentes de gaúcho, eu me senti nu. Eu digo: ‘Por que o Nordeste não tem a sua característica? Eu tenho que criar um troço’. Só pode ser Lampião. Apanhei por causa de Lampião. Eu digo: ‘Eu vou usar o chapéu de Lampião.’ Aí escrevi para a mamãe pedindo um chapéu de cangaceiro com toda urgência. No primeiro portador que ela teve, ela mandou o chapéu.

Rapaz, quando eu botei o pé no palco da Rádio Nacional só faltaram me matar de raiva. ‘Como é que você, um mulato formidável, um artista fabuloso, se passa por um negócio desse? Reviver o cangaço, cangaceiros, facínoras, ladrões, saqueadores?’ Eu disse: ‘Não se trata disso. É outra coisa. Eu agora sou um cangaceiro musical.’ Aí fiquei com essa característica.”

Grande portador! Saudade de tu, homem. E de Luiz Gonzaga também.

Luiz Gonzaga com o chapéu de cangaceiro, sua marca registrada

foto de Gustavo Moura

A caixa de música que toca Asa Branca

 

***

Uma das poucas vezes que banquei a tiete diante de uma celebridade foi quando, aos 18 anos, deparei com Luiz Gonzaga. Estava no meu primeiro emprego como jornalista, na TV Itapoan, em Salvador, quando dei de cara com o rei do baião. Não resisti e pedi-lhe um abraço, que ele atendeu na maior simpatia. Faria tudo outra vez.


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(4) comentários Escrever comentário

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Marci em 23/11/2012 - 20h18 comentou:

Oh texto lindo!
Amei!
So nordestino o entende por completo!!

Responder

Liza em 24/11/2012 - 21h32 comentou:

Lindo texto. Adorei…

Responder

cida guilherme em 25/11/2012 - 11h35 comentou:

Fiquei emocionada ao ler sobre o grande luiz lua Gonzaga. E relembrar o "portador" tão esperado. Parabéns pelo belo texto

Responder

Mauri em 25/11/2012 - 13h37 comentou:

Mais um belo texto da lavra de Cynara.

Responder

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