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Mídia

Jornalista tem complexo de elite

Boa parte dos jornalistas brasileiros acha que os patrões são colegas: colegas de classe

Te cuida, Peninha, que o sobrinho do patrão é o Donald
Cynara Menezes
06 de junho de 2013, 21h50

Quando eu trabalhei na Folha de S.Paulo pela primeira vez, em 1989, fui demitida porque confundi fisicamente o irmão de PC Farias, Luiz Romero, com o cientista político Bolívar Lamounier (parece bizarro, mas eles eram de fato parecidos). Na época, fiquei muito triste porque me pareceu uma bobagem diante dos furos que tinha dado em minha passagem-relâmpago por lá, e me senti como a namorada que é chutada no auge da paixão. Depois, refletindo, vi que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido ao meu ego de fedelha de 22 anos que já estava se achando, em pleno início de carreira, uma das maiores jornalistas do país. Também foi importante por me fazer perder rapidamente a ilusão de ser imprescindível e não apenas um parafuso na engrenagem deste grande negócio que se chama imprensa. Descobri cedo qual era o meu lugar.

Quatro anos mais tarde, quando o jornal me convidou para voltar, eu era outra. Meu entusiasmo e a vontade de fazer reportagens interessantes continuavam intactos, mas havia morrido dentro de mim aquela sensação de “pertencer” a alguma empresa que contratasse os meus serviços, de ser “querida” na casa ou de integrar uma “família”. Para mim, meu empregador passara a ser apenas meu empregador. E eu, uma mera operária da palavra, que estava por ali fazendo o meu melhor, mas que tinha claro que podia ser descartada a qualquer momento. Até porque, no Brasil, quanto mais você se torna experiente e se destaca numa empresa jornalística, e consequentemente ganha mais, não passa a ser o menos visado na hora dos “cortes”, e sim o oposto.

Esta visão pragmática não me tornou, entretanto, insensível ao descarte de vários contemporâneos que presenciei ao longo dos anos. Cada vez que um deles é chutado, ao contrário, sinto uma revolta ainda maior do que senti naquela primeira (e felizmente única) demissão. É como se fosse comigo. Sinto raiva quando lembro da vez que um amigo, excelente texto, foi dispensado, após 13 anos como repórter, e o primeiro que comentou foi: “Puxa, e olha que nunca dei um ‘erramos'”. Ou do que aconteceu recentemente com um fotógrafo querido, que comemorou pela manhã no Facebook os 20 anos de jornal e, à noite, voltou para publicar em seu mural que havia sido demitido. A empresa certamente nem se deu conta de que o fazia justo naquele dia. Na planilha de custos, aquele profissional impecável se resumia a alguns dígitos numa folha de pagamentos.

A esmagadora maioria dos jornalistas que conheci na minha já longa carreira são, como eu mesma, pés-rapados que ascenderam socialmente em virtude do seu trabalho, apurando, entrevistando, escrevendo, editando, fotografando. Infelizmente, com a ascensão social (somada ao convívio com o poder), os mal nascidos jornalistas se iludem de que passaram a integrar a elite, senão financeira, intelectual do País. É por isso que, como diz Mino Carta, “o Brasil é o único lugar onde jornalista trata patrão como colega”. Boa parte dos jornalistas acha mesmo que os patrões são colegas: colegas de classe. Patrões e jornalistas estariam lado a lado na elite. Não é à toa que tantos não se constrangem em escrever reportagens que representam uma classe a qual não pertencem de origem: se mimetizaram com ela.

É claro que jornalistas ficam abalados e tristes, sim, quando um companheiro de redação é demitido, mas não a ponto de fazer protestos ou de se organizarem para questionar as “reestruturações”.  E por que é assim? Eu acho que, no fundo, os jornalistas não reagem quando alguém vai parar no olho da rua porque, de certa maneira, se sentem solidários também com o dono, seu “colega”, na fria e corriqueira justificativa de de que “era preciso cortar os custos”. Como se a empresa onde batem ponto diariamente fosse um pouco sua, ao mesmo tempo que sabem que serão os próximos. Aquela bendita demissão 24 anos atrás me livrou de sentir esta síndrome de Estocolmo.

Não sei o que vai acontecer, no futuro, com o jornalismo impresso, em crise no mundo –e mais em um país de pouca leitura como o nosso. Não acredito que as demissões que se tornarão cotidianas sejam capazes de provocar na categoria uma consciência de classe que nunca teve e que, ao meu ver, nunca terá. A minha esperança é que a mesma internet que tem causado a fuga de leitores e os consecutivos cortes nos jornais proporcione um novo modelo de empresa de comunicação, alguma experiência individual, quiçá conjunta ou até cooperativa, em que possamos ser patrões de nós mesmos, para variar. As crises costumam ser boas para reconstruir. Oxalá nasça daí um jornalismo onde saibamos melhor nosso lugar na sociedade e a quem estamos servindo ao ganhar, com a notícia, o pão de cada dia.


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(19) comentários Escrever comentário

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fabrício em 06/06/2013 - 21h59 comentou:

caralho, Cynara. impecável texto. faz jus à sua história.

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Jonic em 07/06/2013 - 02h38 comentou:

Grande síntese.

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Mônica Hog em 07/06/2013 - 03h37 comentou:

Muito bom Cynara!

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ted tarantula em 07/06/2013 - 09h58 comentou:

"confundi fisicamente o irmão de PC Farias, Luiz Romero, com o cientista político Bolívar Lamounier"..tudo a ver: dois picaretas igualmente nefastos…tem toda razão de confundir.

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damastor dagobé em 07/06/2013 - 09h59 comentou:

dizem que aqui é único lugar do mundo que jornalista chama patrão de colega…

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Durden em 07/06/2013 - 15h29 comentou:

Jornalista com esse nível de formação?! Seus textos são muito interessantes.

Parabéns.

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marcos em 07/06/2013 - 15h29 comentou:

Melhor um jornalista com complexo de elite, que um com complexo de advogado do governo.

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Renato em 07/06/2013 - 18h46 comentou:

O Mino Carta deve sentir-se constrangido de ser tratado como colega pelos seus empregados.

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Alexandre Rivero em 08/06/2013 - 01h23 comentou:

O silêncio dos jornalistas diante da demissão de um colega é produto do medo.

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morenasol em 09/06/2013 - 00h53 comentou:

irenaldo, é uma expressão. dei o meu melhor = dei o melhor de mim

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Oliverio em 09/06/2013 - 16h30 comentou:

Muito, muito Bommm !!!!!!!! Ler um post desses lava a alma .Parabéns Cynara !!!!! Estarei sempre atento aos seus post´s.

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Carmo Alves em 09/06/2013 - 21h35 comentou:

Eu concordo com você, passei por uma situação a essa dou meus parabém para o texto da cynara.

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Fabrício em 11/06/2013 - 12h25 comentou:

Lindo texto, Cynara! Não faz muito que "te conheço" e a verdade é que já me conto entre os seus leitores. Valeu!

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Edu Maia em 11/06/2013 - 12h30 comentou:

Excelente!

A reportagem ajuda os jornalistas a “caírem na real”. Mas serve para muitos outros trabalhadores que se acham donos do negócio, que exploram outros trabalhadores…

Nas relações entre o capital e o trabalho, ser competente para a empresa (leal, produtivo, criativo…) é imprescindível para manter a empregabilidade: as demissões fazem parte do jogo, mas a lealdade é recíproca.

Nessas relações, quando o foco é o lucro exacerbado, no mundo (neoliberal) do cada um por si, aí, sim, o trabalhador vira objeto.

“Vestir a camisa” de empresas que comungam com a ideologia poderá, adiante, provocar profundas decepções: a insensibilidade faz parte do jogo. A hipocrisia também: a imprensa neoliberal, por exemplo, defende o Estado mínimo, mas com ela debaixo dos guarda-chuvas da reserva de mercado e das isenções tributárias…

Se você é trabalhador (a), pense nisso, também, ao fazer opções políticas. Trabalhador que defende as correntes que comungam com o capitalismo selvagem, iludido pela mídia rentista, está semeando ventos. Adiante, colherá tempestades. Poderá lembrar, arrependido, que tratava seus semelhantes que não seguiam essa ideologia radical como pessoas de categoria inferior…

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REGIS TOLEDO em 11/06/2013 - 22h08 comentou:

Mais uma demitida!

“Depois de 13 anos trabalhando para engrandecer o jornal achei que teria direito a um período sabático e não a uma demissão”

Vera Durão, jornalista há 35 anos, trabalhou para o Valor Econômico durante 13 anos. Passou por coberturas estressantes que chegaram a causar uma úlcera e a perda de 2l de sangue e, mais recentemente, foi uma das jornalistas espionadas pela empresa Vale S.A. “O jornal não teve contato comigo sobre isso. Mandei email para a chefia para conversar sobre isso, mas acabou a gente não conversando porque eu fui demitida”, conta. http://www.apublica.org/2013/06/revoada-dos-passa

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Rafael em 12/06/2013 - 17h40 comentou:

Conhece a iniciativa do Bruno Toturra? http://portalimprensa.uol.com.br/noticias/ultimas

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@Biaa_Smile em 20/06/2013 - 23h56 comentou:

Estou no segundo ano no ensino médio e sempre sonhei em ser jornalista. Quando digo sonho , me refiro a pensar que poderia ser alguém para fazer a diferença no país.
Não foi a primeira vez que li coisas negativas sobre a profissão e cada vez mais fico em dúvida pois tenho medo de perder quatro anos da minha vida com algo que não resultará em nada.
:c

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Pedro em 26/10/2013 - 20h59 comentou:

Falou pouco mas falou bem!!!! kkkk

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Rossi em 05/01/2014 - 05h19 comentou:

E eu que pensei que a Rita Lisauskas era só mais um rostinho bonito! Como havia juízes em Berlim, também há jornalistas no Brasil. Não percam a esperança, ao contrário dos rola-b….vocês são indispensáveis, desde que deixem de se identificar com o dono do capital.

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