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La Garganta Poderosa, a revolucionária revista argentina que dá voz ao povo, não à elite

  Por Erika Morhy*, de Buenos Aires, exclusivo para o Socialista Morena   Algumas ligações, um par de emails e, finalmente, consigo os primeiros contatos. O prédio onde funciona a sede da revista La Garganta Poderosa (ou simplesmente La Garganta), um ex-centro de tortura que virou centro cultural em Buenos Aires, está em reforma e, […]

Cynara Menezes
17 de maio de 2015, 14h55
kevin

(O garoto Kevin Molina, assassinado por uma bala perdida, e o jogador Riquelme)

 

Por Erika Morhy*, de Buenos Aires, exclusivo para o Socialista Morena

 

Algumas ligações, um par de emails e, finalmente, consigo os primeiros contatos. O prédio onde funciona a sede da revista La Garganta Poderosa (ou simplesmente La Garganta), um ex-centro de tortura que virou centro cultural em Buenos Aires, está em reforma e, por isso, seria preciso negociar um local para ser recebida pelos responsáveis pela publicação alternativa criada há quatro anos. Outros dias mais de contatos até encontrar pessoalmente Alejandra Días e Soledad López.

Meio ao entra e sai de jovens e adultos, buscamos um cantinho para conversar, depois de responder a um rapaz que não, Alejandra não era a mãe do menino Gastón Huaman, morto após cair numa fossa em uma favela sem saneamento básico da capital argentina. Estávamos numa faculdade privada de jornalismo, no bairro de Balvanera, que concentra uma série de outras universidades, e Soledad havia sido entrevistada sobre o assunto no dia anterior em um programa de televisão. Com a camisa negra que estampava o nome da revista, não passariam despercebidas.

ale e sol

(Alejandra e Sol. Foto: Erika Morhy)

Alejandra e Soledad têm perfis bem diferentes. Alejandra carrega no rosto marcas dos seus 50 anos sem retoques, fala com mansidão e sustenta um olhar terno. Trinta anos mais jovem, Soledad aparenta estar sempre alerta e é quem agiliza três cadeiras para nos acomodarmos e desandarmos a falar sobre tantas coisas novas e interessantes para ela, desde participar como repórter na revista até o recomeço dos estudos.

Já faz tempo que Sol, como é mais conhecida, concluiu o secundário e começou a trabalhar, para contribuir com o sustento da família paraguaia, que a trouxe para a Argentina aos três anos de idade. Mas nenhuma atividade lhe satisfazia: “Primeiro, porque já não querem empregar uma favelada. Temos que dar o endereço de uma amiga que more em Almagro, por exemplo (bairro menos estigmatizado). Depois, porque só me ofereciam trabalho em que eu tinha que me dedicar onze horas por dia, de segunda a sábado”.

Com essa inquietação entalada na garganta, resolveu participar de uma assembléia do movimento La Poderosa, uma organização de bairros carentes que conhecia como moradora de uma das maiores favelas de Buenos Aires, a Villa 31. Explicou sua situação e a convidaram para ser repórter da revista criada pelo movimento, contar a partir da própria experiência o que passa na sua comunidade. “Eu disse que sim, que adoraria gritar com todos os que já gritam a partir de seus bairros”, relembra Sol, com um largo sorriso e uma euforia de expandir os braços.

O que diz essa gente perigosa

Diferente de Sol, que começou a publicar suas primeiras matérias no mês de março deste ano, Alejandra faz parte da organização popular desde 2010 e ajudou a fundar a revista, “a primeira da cidade sobre a cultura da favela. O especial dela é justamente dar voz às pessoas mais vulneráveis, às pessoas que não são ouvidas por ninguém. E é por isso que tem de ser um grito”.

Todo mês a revista tem na capa a reluzente bocarra de alguma estrela da hora: Lionel Messi, Evo Morales, Pepe Mujica, Estela de Carloto, Marita Verón, Eduardo Galeano, para citar algumas, nas mais de 40 edições que já foram às bancas. “Essa é a estratégia. Através deles, outros podem nos ouvir”, simplificou Alejandra.

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(Capa e contra-capa de La Garganta com Evo Morales)

Obviamente, os jornalistas de La Garganta não querem falar apenas para si. Querem que a sociedade em geral e a própria mídia repercutam o que anda bem e o que anda mal nas áreas onde vivem. Foi por sentir o peso da exclusão social e do estigma da grande imprensa que o movimento La Poderosa decidiu fundar a revista.

Casos como os das crianças Gastón e Kevin Molina, assassinado por uma bala perdida em 2013, são emblemáticos para o movimento, tanto porque foram mortos em circunstâncias de violência institucional quanto porque falta aos casos o bom tratamento do governo e da mídia como o que é dado a casos de outros compatriotas, como o do promotor Alberto Nisman ou o da estudante Angeles Rawson, assassinada em Palermo, bairro de classe média alta de Buenos Aires. “Não temos nada contra essas pessoas, apenas achamos que somos seres humanos iguais a eles”, ressalta Alejandra Días.

Há 45 anos, Alejandra, que não tem formação acadêmica, vive em Zavaleta, bairro periférico de Buenos Aires onde se localizam as Villas 21-24, onde reside. Viúva, Alejandra também viu a morte de um de seus quatro filhos. Já foi cozinheira e vendedora de cosméticos, mas conta com muita alegria que agora pode se sustentar apenas com o trabalho na revista, que de 12 integrantes já conta com 40, organizados em forma de cooperativa. “Somos todos iguais, sem hierarquia. E todos ganhamos o mesmo salário”, reitera.

E se era para inovar, os comunicadores decidiram que igualmente o fariam na escrita, formatada em rimas, como se cada chamada e matéria fosse uma letra de hip hop, impressa nas mais de 20 páginas coloridas.

CheWithMotorcycle

(O jovem Che Guevara e sua moto La Poderosa II)

Che e Alberto Granado: inspiradores

O nome La Poderosa foi escolhido pelos villeros organizados para homenagear a moto homônima com a qual viajaram Ernesto Che Guevara e Alberto Granado, na década de 1950, pela América Latina. É do ideal revolucionário destes dois homens que se nutre o movimento de bairros e a própria revista La Garganta Poderosa.

Se for preciso, faz-se bingos ou vende-se comida. O importante é que as atividades de ambos, revista e movimento, estejam em dia para apoiar a comunidade. A cooperativa de comunicadores, por exemplo, nunca deixou faltar uma edição às bancas do país, ainda que possa ser vendida como nos seus primórdios: de mão em mão. Vinte e dois pesos, que podem corresponder, a título de ilustração, a um quilo de arroz. A tiragem oscila entre os 12 e os 22 mil exemplares.

É por meio dessa rede solidária que Sol conseguiu uma bolsa de 80% na faculdade onde estuda jornalismo desde o último mês de abril. E que Alejandra pôde viajar à Bolívia e ao Uruguai para fazer entrevistas com os respectivos presidentes: “Depois da entrevista com Evo, realmente choramos, minha companheira e eu”. Era a terceira tentativa de ficar cara a cara com o primeiro indígena a governar o país andino.

“Já estávamos fora havia três semanas e não sabíamos quando íamos conseguir a entrevista. Fazíamos de tudo para nos manter: catávamos latinhas para reciclar, vendíamos comida… Deixamos carta no ministério das comunicações, mas íamos a todo lado onde estava Evo, mostrar nosso rosto e a revista, tentar falar com ele. Não podíamos voltar sem a matéria”. Alejandra garante que o tratamento dado pelo presidente a elas foi o mesmo dado por Pepe: de pessoa para pessoa, com humildade, simplicidade.

lagargantacopa

(Os guris de La Garganta na Copa)

A vinda de uma equipe maior, com mais de dez correspondentes da revista, ao Brasil, durante a Copa do Mundo, teve uma ajuda providencial. Alejandra descreve que o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) se interessou pelo intercâmbio de informações que poderia ser feito, com uma linha editorial afim aos interesses da entidade. Os comunicadores receberam as passagens aéreas e bancaram o restante dos gastos, alojando-se em favelas do Rio de Janeiro, de onde desejavam obter opiniões pouco difundidas pelas mídias tradicionais. A iniciativa significou o estudo de idiomas um mês antes da viagem; o português e um pouco de inglês, para facilitar o diálogo entre os hermanos de distintos países.

Todo esse jogo de cintura para arrecadar fundos e garantir a edição do mês, que também se sustenta com assinaturas e doações, é uma forma de burlar a adesão à publicidade nas páginas da revista. “Isso nos limitaria”, repudia Alejandra. Sol destaca que chegam a fazer o que definem como publicidade de contra-ataque, criticar um anúncio ou criar uma propaganda sobre um produto ou serviço enganoso para a comunidade. Mas isso é por conta da casa.

Censura ou autocensura é inadmissível na redação. A única vez em que estiveram pela bola sete, pondera Sol, foi quando elegeram o jogador Daniel Osvaldo como entrevistado principal e decidiram que o atacante do Boca Juniors poderia fazer uma homenagem ao torcedor Gastón. “A visão da nossa área, aonde não chega a urbanização, estraga qualquer negócio imobiliário”, diz Sol. Diante da perspectiva de que a revista comprometesse duplamente o governo da cidade, chefiado por Mauricio Macri, um ex-presidente do clube, houve uma grande distância e muitas condições entre a aceitação do convite pelo representante do jogador e a entrevista em si.

gaston

Autora da matéria, Sol diz que os jornalistas custaram a se decidir, mas optaram por manter a pauta sob as condições do clube, por respeito ao jogador. E, em consideração ao acordado na assembléia popular, iriam revelar o ocorrido na contra-capa da revista, como foi feito na edição 47, publicada em abril: o Boca censurou o jogador e o impediu de falar sobre a morte absurda de Gastón. Em 2013, quando fizeram a capa com Kevin Molina, a redação da revista chegou a ser invadida pela polícia e por pouco não levaram preso um dos jornalistas.

Ainda que Alejandra e Soledad estejam satisfeitas com algumas medidas do governo de Cristina Kirchner, elas reafirmam o princípio da publicação como sendo o braço literário das comunidades da capital e do interior organizadas na Poderosa, o que pode significar críticas ao governo federal também. Se é bom, por exemplo, que todas as crianças e jovens de escolas públicas recebam netbooks para estudar (programa Conectar Igualdade), é ruim que esteja mantido em função pública um acusado de delitos de lesa humanidade –o chefe do Exército, general César Milani, acusado de encobrir um desaparecimento durante a ditadura.

Elas garantem ainda que não existem patrulhamentos na revista pelo fato de terem a sede implantada num espaço do governo federal. A infame Escola de Mecânica do Exército (Ex-Esma), um dos maiores centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio de opositores durante a última ditadura militar, localizado em Buenos Aires, foi desocupado por ordem do então presidente Néstor Kirchner. Transformado no Espaço de Memória e Direitos Humanos, a partir de 2010 os prédios começaram a ser entregues a entidades dos movimentos sociais.

“Todo 24 de Março, feriado pelo Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, desenvolvemos alguma atividade alusiva aos desaparecidos durante a ditadura. Fomos procurados numa destas ocasiões pela organização Hijos (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol). Eles acharam que nossa atuação merecia este apoio; uma sala dentro de um dos prédios, onde dispomos de infra-estrutura para produzir La Garganta”, descreve Alejandra. Até então, valiam-se da casa de algum amigo ou de algum cibercafé. Chegaram a montar a primeira sede com cinco computadores em um espaço cedido por vizinhos e ela se mantém ativa, em especial agora em que não podem utilizar a sala na Ex-Esma.

Em junho do ano passado, La Garganta Poderosa recebeu o prêmio Rodolfo Walsh de comunicação popular da Faculdade de Jornalismo da Universidad de la Plata. Da revista impressa, os comunicadores ampliaram suas tarefas para a esfera virtual, especialmente twitter e facebook, além de utilizarem o site do movimento La Poderosa para publicar assuntos que necessitam de mais imediatismo na difusão.

livrogarganta

Uma articulação com a editora Octubre também resultou num grande trunfo para os ativistas, que agora têm reunidos em livro as matérias de capa e outras reportagens. É como uma primeira biografia da revista e do movimento como um todo, e que mereceu lançamento em grande estilo na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em abril. Em breve estará disponível em mais de 200 livrarias do país.

A cooperativa quer mais. Começou a produzir seus primeiros vídeos e espera ter um programa televisivo, projeto que pode ser favorecido com a implementação da lei que democratiza os meios de comunicação na Argentina. Espera também um programa de rádio e o que mais possa fazer ecoar a luta de cada cidadão que vive em uma periferia argentina.

*Erika Morhy é jornalista, formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e mestranda em Ciência Política, pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso-Argentina).

(Esta é mais uma reportagem de colaboradores do Socialista Morena. Se você quer ler mais textos assim, assine o blog!)

 


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